Por
Henrique Wagner*
Há um velho palhaço pançudo que circula
pela praça do Campo Grande, muito bem caracterizado, vendendo brinquedos
baratos, mas com um ar de enfado terrível. Volta e meia para num ou noutro
poste e acende um cigarro. Um palhaço velho, cansado, fumando e vendendo
brinquedos numa das mais importantes e populares praças da Bahia. Esse palhaço,
que não sei se ainda vive nesse exato momento, representa muito bem uma cidade
grande mutilada por seus governantes e pelo descaso com a cultura e a educação
de nossas décadas. Esse palhaço é atual. Visão cruel, impiedosa, de algo
originariamente engraçado.
O
novo livro de Herculano Neto, SALVADOR
ABAIXO DE ZERO (lançado dia 13/11), é esse palhaço, é essa cidade atual.
É essa Bahia sem abadá, a pele de ébano que é a alma nua do baiano do bairro da
Liberdade (cidade média, diria Herculano): é essa alegria trágica e essa piada
sem graça. Herculano, em seu pequeno volume de contos curtos, é um ficcionista
com mão suja de papel de jornal o mais barato. Seu livro, deliberadamente pulp, é marcado por uma deliciosa
linguagem jornalística, ágil, fluente, e cada um dos pequenos textos parece uma
notícia. E uma notícia chocante, sobretudo quando não choca.
Primeiro
a registrar, em literatura, o termo “Pituaço”, essa ortoepia inventada pelo
povo para evitar a rima, num dos contos do livro. Herculano Neto é atualíssimo
e atualiza seus leitores, naturalmente. Pode-se dizer, sem embargo, que
Herculano é um repórter, e quase estamos diante de um jornalismo literário,
mais para Hunter Thompson do que para Tom Wolfe. Essa marca humana faz com que
o leitor se identifique de imediato com o texto, a ponto de seguir uma história
não só pelo que há de bem engendrado em literatura, mas pelo que há de
verossímil e de utilidade pública. Um escritor é, antes de qualquer coisa, um
cronista de seu tempo. O que seria da Bahia dos anos 40 e 50 sem Jorge Amado?
Uma Bahia registrada por historiadores; portanto, sem a arte e o estilo de um
ficcionista. Aprender sobre a Bahia com Jorge Amado é muito mais prazeroso que
aprendê-la com Theodoro Sampaio ou até mesmo com José Valladares, que tinha uma
escrita saborosíssima.
Baiano
sem nostalgias, urbano com vista para o recôncavo, de onde viera, Herculano
Neto inscreve Salvador no rol das grandes metrópoles literárias, ao lado do Rio
de Janeiro de Rubem Fonseca e da São Paulo de Marcos Rey. Seus contos são
citadinos, mas de passagem, uma vez que é possível sentir o pincel do santo-amarense
aqui e ali. E é russo por seguir os preceitos do conto tchecoviano, com seus
finais dissimulados, silenciosos.
Sua
primeira pessoa é devastadora. Insere subitamente o leitor na história, no
livro, no bolso. Admirável habilidade para vestir personas, ser a pessoa do
texto – e todo tipo de pessoa. Se a narrativa na primeira pessoa, de um modo
geral, tem fácil capacidade para aumentar a identificação do homem de cidade
grande com o texto e o herói do texto, no caso de Herculano essa capacidade é
catapultada com tremenda força em função da matéria compacta de que dispõe, em
seus contos curtos, e da linguagem despojada de todo e qualquer maneirismo ou
pessoas outras – que seriam fantasmas, em verdade; talvez de Canterville,
talvez dos sonos culpados de um Scrooge.
Cruel
e engraçado como os palhaços de circo que fumam, ainda fantasiados, SALVADOR ABAIXO DE ZERO inventa uma
Bahia hollywoodiana para desconstruí-la com a força com que Hollywood construiu
e destruiu Marilyn Monroe. Uma Bahia existente, mas revelada em sua polpa pela
escrita de um brutalista literário, termo usado por Alfredo Bosi para designar
o estilo do mineiro Rubem Fonseca.
Eis
um livro que orgulha o baiano que tem vergonha de ser baiano, em certas
ocasiões e lugares, e reinaugura uma cidade cheia de um ritmo frenético e
decadente, cheia de uma literatura úmida e soturna, contrária ao sol de uma
cidade que ainda tenta ser apenas litorânea.
(*) Professor, escritor, crítico de
teatro e cinema
2 comentários:
Ainda nao sei se meu livro merece tanto, mas fico feliz.
O POETA E O CONTISTA DE SANTO AMARO DA PURIFICAÇÃO!
Eu me sinto em casa quando a pauta é o poeta e contista Herculano Neto. Prefaciei seu livro de estréia pela Fundação Casa de Jorge Amado/COPENE que é "Cinema". Fizeemos parte de uma antologia do BANCO CAPITAL DOS GUEDES E DE CHAMUSCA.Herculano Neto se insere na literatura baiana do que há de mais moderno e original. Salve Santo Amaro e Sergão, Dum,POETA EDINE SANTANA E TANTOS OUTROS QUE ENGRANDECEM A LITERATURA BAIANA. Miguel Carneiro
Postar um comentário